Numa vila esquecida entre as serras de Portugal, onde as pedras das ruas sabiam os nomes dos seus mortos e o frio sussurrava os pecados dos vivos, começou a circular uma história que poucos ousavam contar. Era sobre um caderno preto, encadernado em cabedal gasto, que aparecia sempre no dia seguinte às eleições legislativas. Chamavam-lhe "O Livro do Voto Pesado".
Não se sabia quem o escrevia, mas nele surgiam, com uma caligrafia quase ritual, os nomes dos partidos e os votos recebidos. À frente, uma coluna sombria com números assustadores: milhões de euros, calculados com uma precisão demoníaca. Três vírgula trinta e nove e cinco euros por voto. Sempre.
À primeira vista, não era mais do que um caderno de contabilidade. Mas quem o lia, quem ousava tocar-lhe ou questionar o seu conteúdo, era marcado.
O Primeiro a Ver
Manuel Tomé era contabilista na Junta de Freguesia de Santa Bárbara das Almas. Um homem de rotinas simples, cafezinho às 8h10, contas a limpo às 9h, e um jornal desatualizado às 17h. Foi ele quem encontrou o caderno pela primeira vez, pousado em cima da secretária do presidente da junta, numa manhã enevoada de maio.
Abriu-o por curiosidade, e os seus olhos correram pelas páginas com uma lentidão que parecia arrastar o tempo. A primeira entrada:
PPD/PSD.CDS-PP - 1.971.558 votos - 6.692.640 €
PS - 1.442.194 votos - 4.896.849 €
Chega - 1.437.881 votos - 4.884.197 €
A mão de Manuel tremeu. Ao virar a página, viu o nome da sua filha, Sara Tomé, escrito a sangue. Junto, uma legenda macabra: "Enfermeira. Unidade de Cuidados Continuados. Encerramento previsto: Junho."
Nos dias seguintes, Sara adoeceu com uma infecção hospitalar inexplicável. A unidade fechou por falta de financiamento.
A Escuridão Cresce
Começaram a surgir relatos de outros cadernos noutros concelhos. Em Coimbra, em Faro, nos subúrbios do Porto. Todos iguais. Todos com a mesma lista, os mesmos valores, a mesma caligrafia. Todos profetizavam o desmantelamento de serviços essenciais: escolas com telhados a cair, centros de saúde com médicos-fantasma, bombeiros sem gasolina.
O padrão era sempre o mesmo: quanto mais votos um partido recebia, maior o montante que lhe era atribuído, e maior o corte em algo vital. Como se cada voto fosse um pacto silencioso, um dedo assinado em sangue que dizia: "Toma. Leva. Mas tira de outro lado."
O Repórter
Joaquim Rato era jornalista freelance, especializado em política e escândalos financeiros. Um homem cético, calejado pela corrupção e pelo cinismo. Quando ouviu falar do Livro, pensou tratar-se de uma história popular, uma tentativa de justificar o descontentamento com mais um governo ausente.
Viajava até Évora para entrevistar um antigo autarca que afirmava ter visto os cadernos se multiplicarem sozinhos, como um vírus que usava papel e tóner em vez de DNA.
"Não são cadernos," disse-lhe o homem, "são registos. Pactos. Cada voto dado, um compromisso selado. Cada cálculo, uma oferenda. E eles não se esquecem."
Rato pediu provas. O homem deu-lhe um caderno. Quando o jornalista o abriu, a página era espelho do seu futuro: o seu nome, o seu número de contribuinte, e uma frase: "Tens sete dias."
Morreu ao sexto, com hemorragia interna. O relógio do seu quarto tinha parado às 03:39 da manhã.
O Segredo dos 3.395 Euros
Havia algo de ritualístico no valor. Três mil trezentos e noventa e cinco euros por voto. Porquê não três euros? Porquê não quatro? Um professor de numerologia explicou, em tom grave:
"Três representa a unidade divina, a trindade. Nove é o fim de um ciclo. Cinco é a instabilidade. Juntos, significam: sacrificar o todo para garantir o caos."
Era o preço da consciência colectiva. O custo do voto não era apenas financeiro; era espiritual, social, civilizacional.
Quando o Estado Dorme
Hospitais fechavam sem aviso. Lares de idosos eram abandonados. Escolas com 30 alunos passavam a funcionar em refeitórios improvisados. Os orçamentos, quando questionados, mostravam cortes "técnicos", mas ninguém conseguia dizer onde tinha ido parar o dinheiro.
E no entanto, os partidos construíam sedes novas, contratavam agências de publicidade, faziam comícios com luzes LED e drones. Como se a política fosse um culto e o povo, uma multidão de crentes famintos por milagres que nunca viriam.
O Círculo Fecha
Em 2029, um jovem programador encontrou o padrão em código-fonte de um software usado pelo Ministério das Finanças. Era um loop:
for voto in votos:
subvencao = voto * 3.395
cortar_servico_publico(subvencao / 2)
O sistema tinha sido automatizado. Não era humano. Era um mecanismo. O Estado não era mais o guardião. Era o condutor de um comboio fantasma.
Ele denunciou o caso. Dois dias depois desapareceu. Restou apenas um bilhete no teclado: "Cada voto conta. Literalmente."
Epílogo: A Escolha
Na próxima eleição, o povo apareceu em massa. Mas não para votar. Para assistir. As urnas estavam vazias. Os boletins em branco. O Livro do Voto Pesado apareceu pela última vez, com uma única frase:
"Sem votos, sem sacrifícios. Sem sacrifícios, sem poder."
Naquela noite, os hospitais reabriram. As escolas voltaram a ter giz. Os bombeiros receberam gasóleo. E os partidos? Os partidos ficaram em silêncio. Como se o verdadeiro poder tivesse regressado a quem dele nunca devia ter abdicado.
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