A Maldição do Canal 666: Portugal Está a Ser Observado

Diz-se por aí — entre dentes e com o som da chaleira a chiar ao fundo — que há um canal na televisão que ninguém assina, mas todos vêem. Um canal que aparece sozinho, de madrugada, entre o Big Brother e os infomerciais de colchões que curam tudo menos a alma. Canal 666. Sim, leste bem. Se o sintonizares às 03:33 da manhã, entre o zapping da insónia e o último gole de whisky barato, ele aparece.

Não tem número. Não tem nome. Só uma transmissão contínua e sinistra daquilo que parece ser… Portugal.

Mas não o Portugal bonito dos postais. Não, meu caro. Este é o Portugal por dentro. Um reality show macabro onde os protagonistas são políticos com sorrisos de tubarão, cidadãos anestesiados pelo futebol, e influencers que vendem xarope detox com mais fervor do que um pregador em noite de Apocalipse.

Eu descobri este canal por acidente. Juro. Ia ver se o Braga estava a levar mais uma tareia na Liga Europa, mas tropecei ali, num espaço vazio entre a RTP Memória e uma estação qualquer de telecompra. Estava a dar uma espécie de Assembleia da República, mas em vez de deputados, vi bonecos de trapos com gravatas e olhos costurados. Debatiam, berravam, gesticulavam… e a cada promessa, um fio invisível puxava-lhes os braços para cima, como se alguém nos bastidores estivesse a brincar com marionetas humanas. E eu pensei: "olha, que bela metáfora". Mas não era. Era literal. Aquilo era mesmo a política portuguesa, em carne, osso e feltro barato.

Do outro lado do ecrã, uma voz sussurrava, monocórdica, como se estivesse a narrar um documentário sobre formigas suicidas:
"A Pátria observa-te. A Pátria entretém-te. A Pátria distrai-te enquanto se serve do teu prato."

Eu devia ter desligado. Devia. Mas fiquei. Fiquei porque, no fundo, estava a ver o que já sabia, mas que preferia fingir que não era verdade. A verdadeira Casa dos Segredos era esta. O verdadeiro Big Brother, com "B" maiúsculo e Orwelliano, não é o da televisão. É o que paira sobre a nação, como uma nuvem de gás hilariante, a rir-se de nós enquanto cantamos o hino com lágrimas nos olhos e os bolsos vazios.


A Maldição Começa

Depois daquela noite, tudo começou a mudar. Não drasticamente, não como nos filmes em que alguém acorda e há zombies a passear no Rossio. Não. Foi mais subtil. Mais português. Como uma infiltração no tecto da consciência coletiva. Comecei a ver sinais. Oiço debates políticos com o som cortado e ouço, em vez disso, o riso de uma plateia invisível. Riem-se sempre que alguém diz "justiça social" ou "igualdade de oportunidades". Riem-se muito quando se fala em "transparência".

As pessoas à minha volta começaram a agir estranho. O taxista que ouvia fado, agora só ouve resumos do Big Brother. A senhora da pastelaria, que antes falava de contas e vida cara, agora só fala da última influencer que foi "cancelada" por dizer que prefere bolonhesa a tofu. Os miúdos na escola? Já não sabem o nome do presidente da República, mas sabem o nome do cão da Bruna do reality show.

Tentei falar disso. Escrever sobre isso. Fiz crónicas, postei, gritei aos quatro ventos que alguma coisa está errada. Mas ninguém ouve. Ou melhor: ouvem, mas riem. “Ah pá, estás sempre a exagerar”, dizem. “É só televisão.” Mas não é. Não é só televisão quando todos os canais dizem a mesma coisa. Não é só entretenimento quando a distracção se torna anestesia. Não é só um reality show quando a realidade é o show.


Os Bastidores do Esquecimento

Comecei a investigar. Fui a arquivos. Fui à Biblioteca Nacional, onde ainda há livros com pó e verdade. Fui a sessões parlamentares vazias às quartas-feiras. E quanto mais escavava, mais estranho tudo se tornava. Descobri que há uma lei não escrita em Portugal: a do entretenimento obrigatório.

Está em todo o lado. Nas escolas, onde se ensina tudo menos pensamento crítico. Nos jornais, onde o que vende é o escândalo, não a substância. Nas conversas de café, onde a preocupação com o país desaparece sempre que há bola ou polémica com famosos. A ignorância tornou-se um vício confortável. Como um cobertor eléctrico que frita devagarinho a espinha dorsal do senso comum.

Ninguém quer saber. Porque saber dói. Porque saber obriga a agir, a votar com olhos abertos, a exigir. E isso, meu caro, é trabalho. É mais fácil falar da Bruna e do Pedro, da casa, dos beijos, dos ciúmes e das galas. E enquanto isso, o país derrete. Como manteiga deixada ao sol. Manteiga, não margarina. Porque até nisso já nos mentem.


Os Media São o Novo Culto

Liguei-me a um velho jornalista, reformado, que me recebeu em casa com olheiras profundas e uma pilha de recortes de jornal. Disse-me que os noticiários já não informam: ensaiam. Que cada peça vem com guião, elenco e patrocínio. Que há uma redacção secreta onde os temas do dia são decididos com base no que mais distrai. “O povo não quer verdade”, disse ele, “quer novela. Quer heróis, vilões, cliffhangers e lágrimas em prime time.”

E sabes o pior? Ele tinha razão. Somos viciados no enredo da decadência. Amamos os escândalos. Vibramos com o drama. E se o reality show real — aquele da política, da saúde, da educação — não tiver reviravoltas suficientes, inventam-se. Os media são os novos guionistas do medo. Do ódio. Da distração.


A Revelação Final

Voltei ao canal 666. Era preciso. Estava obcecado. Sentei-me, de novo, às 03:33. E ali estavam eles: os mesmos bonecos, agora com os fios a arder, mas ainda a sorrir. E atrás deles, uma sombra. Alta. Sem rosto. Mas com comando na mão.

A sombra olhou para mim — eu sei que olhou, mesmo sem olhos — e disse:

"Tu sabes demais. Mas não o suficiente para mudar alguma coisa."

E desligou-se. A televisão, o canal, tudo. Fiquei no escuro. Literal e metaforicamente.


Acordado na Distopia

Desde essa noite, não durmo bem. Acordo suado, com jingles de telejornais a ecoar na cabeça. Vejo outdoors com slogans políticos que piscam, como se me hipnotizassem. Os debates soam como episódios de sitcoms mal escritas. E o povo... o povo continua.

Continua a rir. A votar como quem joga raspadinhas. A escolher líderes como quem escolhe o concorrente favorito do “Desafio Final”. A preocupar-se com tatuagens de jogadores, mas não com reformas roubadas.

Talvez isto seja um sonho. Ou um pesadelo. Ou talvez estejamos todos a viver no canal 666. Talvez Portugal já tenha sido vendido como franchise de reality show, e nós sejamos só figurantes. Ou talvez, só talvez, o verdadeiro terror seja saber que tudo isto é real... e ninguém quer mudar o canal.

Se leres isto, desliga a televisão. Vai votar. Vai gritar. Vai pensar. Porque se não fores tu… a sombra do comando continua a escolher por ti.


Fim?

Talvez. Mas desconfia se o comando da tua televisão começar a mudar de canal sozinho. E nunca, mas nunca vejas TV depois das 03:33.

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